Plantada no chão

Esta crônica é parte integrante da obra conto na rua estórias de São Paulo & outras estórias escritas, impressas e distribuídas por Ignacio Mendes jicmendes@gmail.com PLANTADA NO CHÃO Na cidade pouca gente ainda sabe o nome das árvores. Aquelas que sobraram, imprensadas num buraco do concreto, ficam mais anônimas a cada dia. Porém, de vez em quando uma delas encontra um jeito de marcar presença. Como aquela na calçada do largo, bem ao lado da igreja, diante de um dos braços do transepto, chamada de árvore como a meia-dúzia de companheiras suas que rodeiam a praça. Como elas, já alcançou uma boa altura, pois o cimo da sua copa quase chega no nível do telhado da igreja. Mas será notada pelos moradores que a encaram da janela do terceiro andar? Pelos transeuntes que não têm tempo de ficar na sua sombra? Que reclamam da calçada estreitada, impraticável nos horários de pico? Chamam-na apenas de árvore. Até que um dia ela começou a dar frutos. De início pequenos e escondidos, visíveis somente aos passarinhos gulosos que alvoroçam o ar da praça. Depois, o talo que liga os frutos ao tronco se fortaleceu e os frutos começaram a crescer. Muito feios a princípio, lisos e disformes, incharam e se enrugaram até que os passantes podiam vê-los, apontá-los com o dedo e dizer seu nome: “jaca”. Tornaram-se opulentos, verde-claros, dependurados por um talo forte e espalhados por toda a árvore. Feios ainda, mas – como saber? – a beleza tem seus meios de surpreender onde menos se espera. Suscitavam a admiração de quem sempre passava por lá e contava a cada vez uma nova protuberância. Dez, onze, doze, treze, até perder a conta. Uns poucos temiam ser atingidos na cabeça pelas frutas gordas e suculentas. Quem sabe o quanto pesam, se aquele talo agüenta – e não havia ninguém para fiscalizar o seu crescimento. Outros entendiam a beleza daquela frutificação e a contemplavam. E a maioria saciou sua fome esticando os braços para colher os frutos. Como o casal de mulheres que parou debaixo dos galhos carregados, de olho nas jacas maduras. Nenhuma das duas tinha muita estatura, e só restavam frutas nos galhos mais altos da árvore. A primeira tentou um salto e voltou ao chão com uma pancada que despertou uma antiga ciática. – Não faça isso, disse a segunda, cuidado com as suas costas! Enquanto a primeira calmava a lombar, a segunda pediu emprestado um banquinho a um dos ambulantes que faziam ponto na calçada. A primeira subiu no banquinho e a segunda a amparou pela cintura, mas ainda faltavam alguns centímetros. Nenhum dos vendedores tinha uma vassoura para derrubar a jaca. Ninguém tampouco se dispunha a subir na árvore. A primeira já estudava a melhor abordagem para subir quando a segunda a impediu: – Assim não, desse jeito você se machuca! Pediram então a um rapaz que passava por ali se ele conseguia alcançar a jaca. Ele parecia alto e ficou ainda mais quando esticou os braços para cima. Deu um pulo, suas mãos agarraram a fruta e metade dela desceu junto com ele; a outra metade espalhou-se no ar e aspergiu seus ombros e as cabeças das duas mulheres. Ele lhes entregou a jaca partida, pronta para ser servida, e elas a dividiram com ele. Os gomos tinham sabor de cumplicidade e a baba grudava nos dedos como um agradecimento. Sobraram poucas árvores na cidade. Mas aquelas que ainda existem erguem a calçada com suas raízes, rompem o concreto e frutificam com força. Ficam tão conhecidas que ganham até nome próprio: aquela era a Jaqueira do Largo de Santa Cecília.